Hoje faz um ano que a lenda Niki Lauda se foi. O legado do tricampeão austríaco para a Fórmula 1 é maior que seus números estatísticos. Um piloto à frente de seu tempo, quando o homem era maior que a máquina. Racional e técnico, seus conceitos influenciaram as novas gerações de pilotos e os rumos do automobilismo em 5 décadas. Fotos: Alex Farias, Luca Bassani e WRi2
Exatamente quando a Fórmula 1 se encontra cercada de incertezas, sem um novo calendário definido e tendo que se adaptar a um mundo novo cheio de restrições de segurança, uma lenda do esporte e sua opinião racional fazem muita falta: Nicholas Andreas Lauda, ou Niki Lauda nos deixou em 20 de maio de 2019. Para todos os amantes do esporte, independentemente da idade, falar da Fórmula 1 nos últimos 50 anos é falar de Lauda.
O piloto que correu 13 temporadas e foi bicampeão pela Ferrari em 1975 e 1977 e campeão pela McLaren em 1984, virou também um ícone por seu trabalho dentro dos boxes. Depois que abandonou as pistas em 1985 a sua visão do esporte influenciou várias gerações de pilotos.
Seu conceito que o piloto precisava conhecer em detalhes seu equipamento, se cuidar fisicamente e aceitar margens de risco no limite da razão, são ideias que ficaram em definitivo no esporte ao redor do mundo.
A Ferrari 312 T2 que Niki Lauda sofreu seu acidente quase fatal no GP da Alemanha em Nürburgring, durante o Grande Prêmio da Suécia de 1976 em Anderstorp
Niki Lauda trabalhou como diretor da atual equipe Mercedes pelos últimos 7 anos e se tornou um personagem presente em todos os GPs. Lauda criou uma relação visceral com o esporte, o que tornou sua morte algo muito mais impactante. No atual grid da Fórmula 1, o hexacampeão Lewis Hamilton lamentou muito no ano passado a perda de seu amigo pessoal e um dos diretores da equipe Mercedes GP, “Ainda estou sofrendo para acreditar que você se foi, Niki.
Sentirei falta de nossas conversas, risadas e seus abraços apertados ao final de cada vitória conquistada juntos. Foi realmente uma honra trabalhar ao seu lado nos últimos 7 anos”, disse Lewis na época.
Ano passado nossa equipe da CAR Magazine esteve no Grande Prêmio da Áustria no circuito de Spielberg na primeira corrida no país de Lauda, depois do seu falecimento. O mesmo circuito em que a Fórmula 1 deseja retomar agora suas atividades em 4 de Julho. Naquela oportunidade CAR Magazine colheu o relato de dois companheiros de Lauda, um dentro do coração da Ferrari na década de 70 e outro contemporâneo na sua juventude em Viena.
Lewis Hamilton venceu o Grande Prêmio de Mônaco deste ano usando um capacete em homenagem à Lauda
Ercole Colombo, consagrado fotógrafo italiano com mais de 50 anos de experiência em mais de 700 GPs de F1 eternizados por suas lentes, relatou com muita sensibilidade a perda daquele que foi um companheiro em seus anos como fotógrafo oficial da Ferrari. Segundo o fotógrafo:¨ Niki Lauda foi o piloto mais técnico e completo da Fórmula 1, entendia da engenharia que tornava o show desse esporte possível.
Hoje pode se dizer que os novos pilotos têm dentro de si alguma herança de Lauda, porque suas atitudes revolucionaram a profissão na década de 70¨. Para Ercole a habilidade do piloto austríaco é comparável com a do atual pentacampeão Lewis Hamilton, igualmente técnico e preciso em suas manobras, buscando sempre tirar 100% de tudo que o carro pôde oferecer. Do ponto de vista da personalidade mais introspectiva, focada e resguardada de Lauda, Colombo coloca o monegasco Charles Leclerc como o sucessor do tricampeão nesse quesito. Disse que tanto Leclerc quanto o inglês Lando Norris, relembram em sua juventude e ambição nas pistas, o jovem Niki que muito lutou para conseguir o seu espaço nos seus primeiros anos de F1.
Com certeza um dos momentos mais emblemáticos para o fotógrafo foi o retorno de Lauda às pistas apenas 42 dias de seu terrível acidente em Nordschleife na Alemanha. Ercole relata o grande choque que foi para todos vê-lo colocar seu capacete sob um rosto parcialmente queimado e com curativos na cabeça ainda com algumas manchas de sangue. “O fantástico 4o lugar de Niki em Monza, logo em sua corrida de retorno, foi comemorado como uma vitória de campeonato.
Poucos momentos na Ferrari se comemorou tanto um resultado¨, completa o italiano. Além de fotógrafo chefe da icônica revista italiana AutoSprint, Ercole era amigo pessoal de Lauda e coleciona uma série de histórias com o austríaco. “Niki era um piloto que prezava sua privacidade, mas era muito direto em suas respostas quando perguntado.
Com a mídia de forma geral, ele era muito acessível e educado, mas comigo, em especial, tinha uma relação de amizade muito forte, principalmente em seus anos de Ferrari”, explica o italiano. “Na ocasião de seu campeonato mundial, a Ferrari contratou uma pintora para imortalizar o piloto em um quadro à óleo. Quando se sentou para posar para o retrato, dizem que Niki mandou perguntar onde eu estava. Queria que eu fizesse logo a foto, já que demoraria uma eternidade para ser retratado posando e o resultado seria o mesmo”.
O mestre Ercole Colombo, fotógrafo italiano amante da Fórmula 1 após mais de 700 GP completados ano passado no GP da Itália
Colombo conta que em diversas ocasiões, Lauda emprestou seu carro pessoal para que pudesse fazer seu trabalho e ir dos hotéis às pistas: “Tudo o quê ele realizou dentro e fora das pistas roda hoje em minha mente como um filme, cujo protagonista era alguém que tinha o prazer de chamar de amigo”, concluiu emocionado a lenda italiana da fotografia.
Outro personagem muito interessante encontrado no paddock do Red Bull Ring em julho por nós da CAR Magazine, foi o Dr. Harald Hertz, cirurgião especializado em acidentes e médico do circuito há mais de 3 décadas. Novamente fomos abençoados pelos deuses do automobilismo ao descobrir que o doutor fora amigo de infância de Lauda, estudando com ele da 5a série do fundamental ao 1o colegial em Viena. Dr. Hertz disse que desde pequeno Niki era um amante do automobilismo e sempre quando perguntado respondia que correr de automóvel era o seu sonho. “Niki não era o melhor aluno que tínhamos em nossa classe, mas era com certeza o mais obstinado e esforçado de todos nós.
O tricampeão Niki Lauda escreveu uma das maiores histórias na F1, dentro da pista e como dirigente
Lembro-me que os Laudas moravam em uma grande casa em um bairro nobre de Viena e tinham um jardim enorme. Niki passava várias tardes do ano correndo com sua moto em todos os cantos desse jardim, apenas com 12 anos de idade. Com o tempo as motocicletas viraram fuscas e carros e um dia a Fórmula 1”, relembra entusiasmado o médico. “Quando tinha 18 anos comprou seu primeiro carro Mini Cooper S e depois graças a um amigo nosso, Fritz Baumgartner, conseguiu seu primeiro carro de corridas e na sua primeira prova nacional já havia conseguido um segundo lugar. Depois comprou um Porsche 911 para correr e em pouco tempo tinha se tornado campeão austríaco. Tudo foi uma questão de tempo para que Niki chegasse à sua tão sonhada vaga na F1”.
Dr. Harald relatou como foi um tabu para seu amigo confrontar a família tradicional de industriais e seguir o seu sonho nas pistas: “O avô e o pai de Niki eram importantes empresários na capital e diziam que o nome Lauda era algo lido no caderno de economia dos jornais vienenses e não no caderno de esporte. Após seu sucesso como piloto, Lauda criou sua própria companhia aérea e finalmente estava não apenas nas páginas esportivas, realizando o sonho da família também.”
O McLaren MP4 de 1984 com o qual Niki Lauda venceu o Grande Prêmio da Áustria em Zeltweg em uma demonstração no Red Bull Ring no GP de 2015
A relação do bicampeão Niki Lauda com o Grande Prêmio de seu país relembra muito o que se passou depois de mais de 10 anos com Ayrton Senna no Grande Prêmio Brasil. Quando já eram bicampeões mundiais tanto Lauda como Senna demoraram para vencer um GP em casa.
Depois de algumas tentativas4 frustradas na época dos títulos na Ferrari, em 1984 Lauda foi o primeiro austríaco a ganhar um Grande Prêmio em casa de McLaren. Na época o Dr. Hertz, já como médico do circuito, relembra de forma muito vívida o dia da corrida: “O dia em que Niki venceu aqui em Spielberg é algo inesquecível em minha mente. Ele foi o primeiro e único do nosso país a vencer um GP na Áustria”, completa o médico.
Também em relação ao episódio mais emblemático na carreira de Niki, o cirurgião analisa o quanto mudaram os padrões de segurança da categoria: “Naquela época tanto para o piloto como para os espectadores a Fórmula 1 era um evento muito perigoso. As pessoas assistiam às provas sem proteção e extremamente próximas aos carros. Os pilotos arriscavam suas vidas de maneira absurda em carros que não continham uma tecnologia voltada para a segurança e incompatível com o nível avançado dos potentes motores do carro. Hoje, graças aos avanços na minha profissão e na engenharia como um todo, temos um esporte muito mais seguro”, finalizou o doutor.
A equipe McLaren correu esse ano na Áustria com um selo comemorativo à vitória de Lauda no GP de 1984
A trajetória do jovem vienense foi muito bem retratado pelo filme RUSH em 2013. O filme retrata o início da carreira do austríaco e a disputa épica entre Niki Lauda e James Hunt pelo título mundial de 1976. Em Rush temos recontado o seríssimo acidente de Lauda no GP da Alemanha de 76 em Nürburgring, que por pouco não tirou a vida do piloto na época, mas cobrou a fatura 43 anos depois. Lauda que teve seu rosto e pulmões queimados no acidente necessitou em novembro passado de um transplante de pulmões e morreu em 2019 após complicações decorrentes dessa intervenção médica.
No GP da Áustria desse ano os torcedores usaram bonés vermelhos para homenagear Lauda
O filme RUSH do premiado diretor Ron Howard, romanceia com detalhes a batalha épica de James Hunt e Niki Lauda pelo título mundial da Fórmula 1 de 1976. É o resgate de uma época em que os homens eram maiores que as máquinas, um contraste com o atual momento da categoria onde a tecnologia é quem dá as cartas.
O filme conta a carreira de Lauda desde a Fórmula 3 inglesa, seu início na F1 e ida do austríaco para a Ferrari, assim como a conquista do seu primeiro título com os italianos em 1975. Todavia, a espinha dorsal do roteiro é mesmo a rivalidade entre Hunt e Lauda na luta pelo título mundial de 1976. O confronto entre dois homens com personalidades absolutamente opostas que levam a disputa ao limite da vida.
A Fórmula 1 passava desde 1972 por um gigantesco crescimento de mídia e marketing. Pela primeira vez deixava de ser um esporte da aristocracia europeia e passava a virar um circo de caráter mundial. O tempo era de transformação da indústria automotiva com uma busca frenética por desempenho, porém em circuitos decadentes. Um ambiente feroz quando a categoria matava em média dois pilotos por temporada. O filme Rush retrata com perfeição a ebulição do mundo musical inglês e a cultura europeia da década de 70 onde a F1 também era vanguarda. Nunca em sua história o design dos carros foi tão criativo e excêntrico.
Eram cores em movimento num ambiente novo, desconhecido e frenético. A chegada da TV em cores distribuía ao mundo por satélite e ao vivo essa imagem POP de um esporte psicodélico. Estavam um folhetim de drama com heróis sem capa, mas de capacete. Príncipes sem cavalo, mas montados numa cavalaria que poderia ser mortal. Uma época em que a Fórmula 1 era inocente, brutal e colorida. Nesse contexto temos de um lado, o bem ajustado piloto austríaco Niki Lauda (Daniel Brühl). Preciso acertador de carros, profissional exemplar e com uma técnica natural excepcional. Do outro o ‘playboy’ Inglês James Hunt (Chris Hemsworth) que vivia a sua vida intensamente, cercado de mulheres e álcool.
Uma mistura do mocinho galã com o bandido contraventor venerado. Se Lauda era matemática e física em estado puro, Hunt era gasolina de alta octanagem, na forma mais volátil. Com orçamento de 38 milhões de dólares o filme Rush foi rodado totalmente na Europa, com locações na Áustria, Inglaterra e Alemanha.
O acidente de Niki Lauda no Grande Prêmio da Alemanha de 1976 em Nürburgring foi recriado no mesmo trecho do circuito alemão. Lauda, campeão mundial pela Ferrari no ano anterior havia criticado o circuito alemão, afirmando que o mesmo já não era mais adequado para o estágio de desenvolvimento da Fórmula 1. Com seu sinuoso traçado de mais de vinte quilômetros na floresta de Adenau no noroeste alemão, Nordschleife já tinha a fama da pista mais perigosa da Europa.
As condições da pista no dia do acidente de Lauda eram um pesadelo para qualquer estrategista ou piloto: metade do circuito de 22 quilômetros estava molhado, a outra metade seca que faziam os pneus para chuva perdessem os sulcos em poucas voltas. O austríaco com pneus slick desgarrou sozinho na quinta volta e bateu forte contra o “guard rail”. Sua Ferrari, já em chamas, voltou à pista e foi colhida pelo March do italiano Arturo Merzario.
Lauda começava ali a travar sua luta pela vida. Preso por mais de um minuto dentro de um inferno de mais de 800 graus Celsius, a certo momento Lauda não conseguia mais respirar e tirou o capacete em meio às chamas, o que praticamente derreteu a parte superior de seu rosto. Consciente durante o resgate e o hospital o austríaco travaria uma longa luta contra a morte. Na segunda feira após a corrida Niki foi desenganado pelos médicos e chegou a receber a extrema unção, os gases quentes do incêndio haviam queimado internamente seus pulmões. Porém a dedicação de Lauda ao tratamento, fazendo 10 vezes mais o solicitado pelos médicos mudou a lógica.
A sobrevivência do piloto na época foi considerada um milagre, porém hoje sabemos que Lauda pereceu vítima das sequelas desse acidente 43 anos depois porque precisou de um transplante de pulmões em novembro de 2018.
Em 76 até o acidente, Lauda liderava o campeonato com Hunt no seu encalço. No final de sua recuperação ainda no hospital, o austríaco já assistia as corridas na TV e o domínio do inglês. Esse foi o principal fator para trazer o piloto ainda com feridas de volta às corridas. Apenas 42 dias após o inferno de Nürburgring, Lauda alinha no grid de largada do GP da Itália em Monza, para terminar em quarto lugar e ser erguido como herói nos ombros dos Tifosi italianos.
No confronto final no chuvoso GP do Japão em Fuji, Hunt se tornou campeão do mundo com um terceiro lugar após o abandono espontâneo de Lauda, que considerou que as condições da pista molhada não tinham a mínima segurança necessária: ¨já tive o bastante por uma temporada ¨.
De volta à Lenda, Niki Lauda alcançou um reconhecimento de seu legado que poucos jamais alcançarão fora das pistas. Sua postura como atleta, a sinceridade de seus olhos e o seu trabalho para o desenvolvimento da Fórmula 1 transcendeu gerações. A Fórmula 1 sem sua presença jamais será a mesma, nos resta sonhar que este esporte vença a estatística e um dia nos traga alguém com semelhança de alma e espírito.