A ferida que abriu foi a de que a categoria, em alguns aspectos ainda é meio obscura em certos pontos, principalmente aqueles que surgem exatamente quando se menos espera.
Não importa qual a decisão a fosse tomada, Qualquer atitude em relação ao GP da Bélgica de F1 seria condenada pelos tribunais da internet e fóruns de automobilismo.
Há mais de 40 anos – ou seja, desde antes de muitos fãs atuais terem nascido – a F1 se tornou um negócio com base em uma paixão. Começou lá nos anos 70, com a invasão das empresas tabagistas. Por isso qualquer decisão de hoje seria condenada – um lado sairia perdendo.
Existem diversos pontos de vista a serem analisados neste caso: o do Gerente Comercial que lida com milhões, o do Diretor de Prova (no caso, Michael Masi) que lida com vidas e do fã que lida com a paixão e não tem responsabilidade nenhuma com as questões comerciais. Cada um escolhe seu lado e, quer saber o pior? Todos os lados têm razão!
O público na arquibancada, por exemplo, não corresponde nem a 1% da audiência da TV – a F1 virou um esporte pra TV há pelo menos 40 anos. E virou refém dela. Aliás, quando você compra um ingresso, lá está bem claro que, por ser um evento em céu aberto, podem acontecer mudanças e cancelamentos por força maior.
Os outros dois dias rolaram sem problemas, não há motivo para devolução de ingresso, isso é lacração de quem compra sem ler ou de gente que quer fazer média, como o heptacampeão Lewis Hamilton, que ganhou seu salário sem acelerar e nem por isso ele vai devolver o dinheiro ou repassá-lo aos fãs belgas. O evento, como se costuma dizer entre a turma da produção, foi entregue.
É uma realidade em eventos que a palavra “cancelamento” implicaria em um prejuízo enorme, então eles fizeram isso.
Ontem também nós vimos o tamanho da batata quente que é ser diretor de prova. Aqui a gente já viu o diretor de provas Carlos Montagner ser condenado por conta de um acidente fatal na Stock Car em 2003. Se dá algum problema é na conta do Diretor de Prova que ela entra.
Na ocasião da Stock Car, onde um fotógrafo foi atropelado na largada após Gualter Salles escapar da pista, Montagner pagou sozinho a pena por mais de dez anos sem auxílio de quase ninguém. O Diretor de Prova é o responsável máximo por qualquer coisa que aconteça. Esportivamente e no tribunal também.
E, levando em conta os diversos pontos de vista, a decisão não foi só dele, mas foi no nome dele. E a sombra do acidente de Jules Bianchi na chuva do Japão em 2014 pairou forte naquela salinha. Qualquer pessoa na posição de Masi esperaria o tempo que fosse.
Afinal, o regulamento permite e todo mundo, tirando os marinheiros de primeira viagem, sabe que existe esse procedimento – uma coisa é criticar o formato, a outra é se indignar como se isso fosse algo inédito. Exemplos não faltam.
A ferida que abriu foi a de que a categoria, em alguns aspectos ainda é meio obscura em alguns pontos, principalmente em pontos que surgem exatamente quando se menos espera, como uma chuva impraticável. Mesmo revolucionando na área digital e atraindo novos olhares, muitas coisas na F1 ainda são arcaicas, extremamente conservadoras e burocráticas, como essa questão que vivemos em Spa. E isso, sim, precisa ser trabalhado.
Ainda existe aquela política dos tempos do Ecclestone de que o show precisa acontecer. Mesmo que tendo apenas três minutos.
Choque de realidade – Para muitos, essa foi a prova máxima de que os tempos mudaram. O fã de meia idade, que torcia para chover e Senna, Barrichello ou Schumacher andarem bem, tomou um chá de realidade hoje: os tempos mudaram. Provas como Spa 1998 ou Mônaco 97 nunca mais serão vistas nessa intensidade.
Nosso correspondente Luca Bassani relatou que, entre os fotógrafos presentes no GP da Bélgica, todos ali tinham sentimentos distintos: todos queriam corrida, mas todos também não queriam riscos desnecessários. O fim de semana teve “avisos” suficientes de que poderia acontecer algo bem sério e isso também deve ser levado em consideração.
“Estava com o Mark Sutton e outros fotógrafos, todos esperando por horas, e era senso comum de que, caso a corrida acontecesse, seria como se os pilotos brincassem de roleta russa. Alguém ia se machucar ou até morrer, esse era o sentimento. A gente queria corrida, mas não queria ninguém machucado.”
No fim do dia, os fãs ficaram brigando entre si (afinal, a paixão sempre fala mais alto, seja na corrida ou no futebol, onde o juiz é sempre xingado), mas todo mundo foi dormir tranquilo. O diretor de prova que não precisou segurar nenhuma bucha, a turma do comercial que viu seus patrocinadores reinarem por quatro horas e serem assunto mesmo sem corrida e os pilotos que admitiram que não dava para correr.
E foi melhor assim.
A sorte da F1 é o fato de termos uma rodada tripla pela frente. Na sexta os treinos em Zandvoort voltam, a página vira e o assunto será abafado até o próximo dilúvio.