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Máquina milagrosa

Depois da Tesla, os grandes fabricantes entraram numa corrida de alto risco na eletrificação. Com o i-Pace, a Jaguar acaba de ganha-la. Mas ele pode ser fantástico, além de ser o primeiro? Por Georg Kacher | Edição Alan Magalhães | Fotos Charlie Magee

CarJaguar i-Pace EV400

Quando a Tesla lançou seu Model 8 em 2009, nenhuma montadora levou-a a sério. Desfrutando confortavelmente de seus paraísos multicilíndricos e de combustíveis fósseis, o setor tratou de minimizar e até de ridicularizar o novo ‘player’ do sul da Califórnia. “Com certeza foi um erro”, admitiu Wolfgang Ziebart, que conduz a força de trabalho do i-Pace, que deverá quebrar paradigmas, como vimos acompanhando há 18 meses, e que finalmente estamos dirigindo hoje, na Inglaterra.

“Nós subestimamos a importância da mobilidade ‘plug-in”, continuou Ziebart. “Muitos de nós demoramos a responder, e ninguém tinha uma estratégia traçada para uma rede de recarga como a Supercharger da Tesla, isso sem mencionar o conceito radical de distribuição deles, que tirou a relevância dos revendedores, embolsando seus lucros”. Assim como a Toyota com o Prius, Elon Musk e sua equipe rapidamente alcançaram a liderança e quando as pessoas começaram a mostrar real interesse no Model S, a concorrência teve que correr atrás”.

“Só existe uma forma de vencer esta batalha”, diz Ziebart, que trabalhou em altos cargos na BMW, Continental e Infineon, antes de entrar na Jaguar Land Rover em 2013: “Bater a Tesla não é suficiente. Na JLR, precisamos criar um modelo de negócio que nos dê vantagem na Europa, em relação aos outros fabricantes do segmento Premium”.

Nossa conversa matutina faz uma pausa para pesquisarmos sobre o resort Blackpool, na Inglaterra, famoso pela réplica da Torre Eiffel, complexo que deve consumir metade da eletricidade da cidade. E por falar nisso, parece que houve certo pânico na equipe do i-Pace na noite passada, quando procuravam uma fonte suficiente para recarga. O nosso estava conectado a uma tomada comum no hotel e a bateria do i-Pace estava a 93% as 6:30 da manhã. O medidor de autonomia prometia 439 km, nada mau.

Saímos de Blackpool rumo norte até a cercanias de Lancaster, às margens da Floresta de Bowland, antes de seguirmos para o interior para Yorkshire Dales. Operar o i-Pace é bem simples. Ao apertar o botão ‘start’, ligam-se os instrumentos no painel e o sistema de informação e entretenimento. O próximo passo de seu dedo indicador é selecionar os botões autoexplicativos: D, N, R e P. A transmissão é de marcha única, portanto, nem pense em pisar forte no acelerador em ré. Não há borboletas de trocas de marcha, afinal, não há marchas a serem trocadas, mas eu gostaria de tê-las aqui para habilitar ou desabilitar o sistema de recuperação de energia (mais para a última opção). O volante é recheado de elementos, alguns ativos, outros não, e alguns dependentes da especificação do modelo.

“Esqueça a autonomia e o estado da carga”, diz ‘herr’ Ziebart. “Apenas acelere como se fosse um F-Type”.

O protuberante e fundo painel gera reflexos demais no inclinado para-brisa e é muito profundo para meu gosto. Acomodar os bancos e o painel mais à frente ajudaria. Inspirado no Velar, o console central poderia ter mais suporte lateral também. O mostrador principal pode ser configurado a seu gosto, com ênfase gráfica na velocidade, autonomia, navegação, fluxo de energia ou entretenimento – qualquer que você deseje. O proeminente centro multimídia fica na tela central sensível ao toque.

A posição de condução é alta e todas as 18 formas de ajuste do banco são confortáveis e oferecem bom suporte, porém o espaço para as pernas dos ocupantes mais altos fica comprometido pelo largo console. A visibilidade é prejudicada pelo ângulo de inclinação da área envidraçada e das grossas colunas C. Apesar de ser 100 mm mais curto e baixo que o F-Pace, o compartimento traseiro de carga do i-Pace (há ainda um pequeno compartimento em baixo do capô) é maior, com 656 litros de capacidade em relação aos 463 l do F-Pace – este é o resultado de mandar a maioria de seu conjunto mecânico para baixo do assoalho.

Atingimos a A687 em Yorkshire Dales, região notória pelo alto fluxo de turistas, a maioria em ônibus e ciclistas com suas roupas e óculos coloridos. No verão europeu, o trecho de 65 km entre Ingleton e Bedale, poderia ser confundido com uma especial de rally. O bom é que depois do viaduto Ribblehead, a estrada fica livre por quilômetros. “Esqueça a autonomia e o estado da carga”, diz ‘herr’ Ziebart, lendo minha mente. “Apenas acelere e conduza-o como se fosse um F-Type”.

Ordem entendida. Exceto que esta estrada deve ter sido construída nos tempos do império romano e nunca passou por manutenção desde então. Porém, pesando quase 600 kg, a bateria adiciona peso suficiente para baixar o centro de gravidade a níveis de excelência e garantir uma rolagem tranquila do carro com suas rodas de 20 pol. que aqui se parece com um Range Rover. Mesmo o conforto da suspensão de baixo curso é aceitável e os buracos e emendas no piso não afetam a postura do carro. Ondulações longas e imperfeições transversais raramente incomodam e o ruído dos pneus confunde-se com o do vento. Diferente do Model X, que transmite até as vibrações das faixas pintadas no asfalto aos ocupantes, o Jaguar mantém-se totalmente neutro. O i-Pace faz um belo trabalho de construção da confiança através de sua calma e compostura em velocidade.

Alimentados por uma bateria de 90kWh de íons de lítio, os dois motores elétricos produzem 395 cv e torque combinado de 70,9 kgfm

Exploro os quatro programas adaptativos – Adaptative Dynamics – de condução. Cada um tem seu mapa de direção, resposta do acelerador e calibração de amortecimento. Em Eco, o carro vai sozinho até a próxima farmácia para você comprar seu Valium. Em Snow/Gravel, sobre asfalto molhado, ele escorrega sutilmente, antes de frente e depois de traseira. Em Comfort, pressa e rapidez são eliminados para sempre. Em Dynamic, o i-Pace sente-se como deveria se sentir: acelerador rápido não chega a ser agressivo, a direção chega no limite de ser taxada como pesada e a suspensão ganha caráter totalmente diferente com mais carga. Mas além disso, o carro o convida a explorar seus fetiches, com as possibilidades de calibração personalizada dos algoritmos do Dynamic, ou especificando o quanto você quer mais de aderência e estabilidade proporcionados pelo Adaptative Surface Response, desenvolvido pela Range Rover.

O botão ‘ESP off’ é um pouco estranho para um carro elétrico, mas… “Desabilitar o controle de estabilidade é uma bela demonstração de como ele seria sobre gelo”, afirma Ziebart. “No geral, provocar a traseira com potência não faz parte do caráter deste carro”.

Ele está sendo modesto, principalmente porque o i-Pace pode se comportar como um esportivo. Tudo bem que ele parece querer voar sobre junções do piso e levantar a roda dianteira nas curvas. Meu passageiro não fala nada, mas muda de feição a todo momento.

Desempenho? Acelerando de 0 a 100 km/h em 4.8 s, o Jaguar de R$ 400 mil (R$ 340 mil na Europa, sem opcionais) supera o Tesla Model X 100D de R$ 595 mil em 0.4 s. Alimentados por uma bateria de 90kWh de íons de lítio, os dois motores elétricos produzem 395 cv e torque combinado de 70,9 kgfm. Se a velocidade máxima de 250 km/h do Tesla ganha as manchetes, a do Jaguar é de 200 km/h. Estes números podem ter um enorme interesse acadêmico, mas a qualidade de condução e dirigibilidade é o fator que vende carros, e nessa área o modelo norte-americano é bem inferior ao da marca inglesa.

Não encontramos nenhum Tesla na estrada para comparações, mas um pequeno duelo de 10 km com um Mercedes-AMG C63 S foi uma bela surpresa no trajeto. Verdade, acima dos 120 km/h, quando a potência se sobrepõe ao torque, o Mercedes com seu V8 de 503 cv se mandava. Mas nas curvas lentas precedidas de fortes freadas, o Jaguar quase colocava suas garras sobre a presa – alto nível de regeneração. Assim que você tira o pé do acelerador, o efeito é como se estivéssemos encarando um fortíssimo vento de proa. O Jaguar mais do que supera o Mercedes em potência de frenagem.

Demora um pouco para você se acostumar ao sistema regenerativo – você quase nunca pisa no freio, acostuma-se a deixar o carro recarregar sua bateria. Isso acaba viciando, como comentou o Ziebart, que adora a sensibilidade do sistema, explicando um pouco mais o porquê de eu falar sobre a possibilidade de mudar o sistema no volante entre alta e baixa recuperação de energia, que infelizmente está escondido em algum sub-menu do sistema MMI. O nível mais alto funciona bem em algumas situações, forçando-o a manter o acelerador num certo ângulo mínimo, ou o carro simplesmente para. Para mim, achei que era um pouco mais eficiente, pois a velocidade não diminui tanto.

Mas onde o i-Pace realmente se supera é numa sequência de curvas e em rotatórias grandes. Especialmente nas rotatórias. O entre-eixos longo de 2.990 mm e o peso de 2.208 kg o remete a uma nova dimensão de aderência e controle que nenhum outro SUV médio consegue atingir? O Porsche Macan consegue. Foi isso que frustrou nosso amigo do C63 S ao ver aquele bicho branco crescendo insistentemente em seu retrovisor.

“Esta é a prova viva de que os modernos veículos elétricos a bateria não são mais concessões dinâmicas”, declarou o radiante engenheiro sênior a meu lado. “No entanto, o torque abundante e instantâneo vai redefinir as manobras de ultrapassagem, a tração integral elétrica introduz uma nova qualidade em cada eixo através do vetorizador de torque, enquanto a suspensão pneumática neutraliza os efeitos do peso excedente”.

“O i-Pace combina o melhor de dois mundos”, continua Ziebart. “Ele protege nosso planeta e coloca um enorme sorriso no rosto de seu condutor”. Ele faz outras coisas também. Como humilhar um Ford Focus ST numa ‘largada’ de semáforo na avenida principal de Blackpool. Ou assustar um cachorro que não ouviu nossa aproximação e saiu correndo em direção à calçada.

Você também pode estacionar de graça enquanto recarrega pagando um preço irrisório pelo ‘combustível’. Basta estacionar em um ponto de recarga e a infusão de 100 kW leva sua bateria a 80% de carga em apenas 40 minutos. E, melhor de tudo, vê as bombas de gasolina apenas como estátuas a serem apreciadas, uma após a outra. Se nosso percurso de avaliação tivesse sido feito com gasolina, só de combustível gastaríamos cerca de R$ 250, o uso da tomada no hotel não passou de R$ 40.

Apesar de ter nascido como protótipo derivado de um F-Pace, o i-Pace terminou como um modelo completamente remodelado. Mesmo compartilhando eixos e o sistema de direção com seu ‘irmão’ convencional, o Jag elétrico não tem o mesmo diâmetro de esterço. Montado na Magna Steyr, o processo de gestação desde os desenhos até a linha de produção demorou apenas quatro anos. Ziebart afirma que o projeto é rentável, mas que é difícil saber como a Jaguar vai realizar lucro com estes custos de material e montagem de uma modesta produção de 25 mil unidades por ano.

Não seria isso uma previsão cautelosa demais? Afinal, a companhia fornecerá 20 mil veículos para a Waymo, seu novo parceiro técnico-investidor (antigo projeto de carro autônomo do Google) até o final de 2020 e a resposta dos concessionários pelo mundo é entusiasmada. “Como o i-Pace e o E-Pace são montados na mesma linha, fica fácil flexibilizá-la”, concedeu Ziebart. “Se a demanda for alta, teremos que recalcular nossa capacidade”.

Graças à escassa distância entre os eixos e as extremidades do carro, o i-Pace tem comprimento de apenas 4.682 mm. Ao mesmo tempo, tem mais espaço interno que seus concorrentes, como o Mercedes EQC (outro SUV elétrico com lançamento em 2019). Como? Porque estava claro desde o início que o i-Pace não teria que desperdiçar nada para acomodar motor e transmissão.
Já que a base do i-Pace acabou ficando mais cara e complexa do que o previsto, a segunda geração do modelo, planejada para 2025, será derivada de uma nova plataforma modular. Apesar de não comentarem sobre isso, um aumento de potência para cerca de 600 cv, conseguido com a fácil instalação de mais um motor na traseira, não é uma ideia a ser descartada.

A cerca de 80 km de Scarborough, o monitor altamente complexo sugere que façamos uma recarga assim que possível, de preferência em um shopping center a 25 km a frente. Dois minutos depois, no entanto, o computador se manifestou de novo e avisou que teríamos como finalizar o percurso. “Todo mundo está começando a aprender sobre um sistema que é novo para todos”, concluiu Ziebart.

“Nesse momento a infraestrutura de recarga está engatinhando, usuários são desconfiados com novas tecnologias, ainda mais essa, que revoluciona um setor. Assim, sua aceitação dependerá do nível de atração do produto. Por isso, muito conforto e segurança são importantes. Quando o indicador de autonomia mostrar zero, o sistema ainda trabalhará com uma ‘reserva’. O i-Pace pode utilizar qualquer carregador, entre 50 e 800 volts e pode ser recarregado em até 100 kW, assim você terá certeza de que não ficará na mão, mesmo que um ponto demore mais que outros”.

Ao nos aproximarmos de Scarborough, o tráfego se intensifica e o ritmo cai. O piloto automático ativo ajuda no anda e para, assim como o controle de faixa, que faz o possível para acompanhar o carro a frente. Esta configuração também é o início do processo de condução autônoma. Ainda sem o sistema obrigatório de alerta de baixa velocidade, que desaparece acima dos 40 km/h, o i-Pace precisa ser conduzido com cuidado extra em áreas povoadas, pois ninguém espera por um carro totalmente silencioso. Isso representa um dilema, pois ficar alertando as pessoas com a buzina pode parecer uma atitude rude.

É interessante que muitos transeuntes não notam o i-Pace. Desenhado por Ian Callum, ele traz a grande grade esportiva tradicional da marca e rodas de 20 pol. (22 pol. são opcionais). Ninguém aponta seu smartphone para fotografá-lo, ninguém pergunta nada, afinal, quase ninguém percebe que se trata de um veículo de emissão zero. O mesmo comportamento aconteceu em Dales, onde o i-Pace parecia apenas mais uma ovelha no rebanho.

Chegamos a Scarborough bem na hora do chá, com ainda 105 km de autonomia. Verdade que economizamos bastante no último turno de condução, bem chato, por sinal. Daqui a 40 minutos eu já teria carga suficiente para voltar para casa, mas hoje meu tempo com o Jaguar se acabou.

Fico chateado em ver o i-Pace ir-se, pois se trata do prenúncio de um futuro brilhante e promissor. Este tipo de veículo elétrico protege o meio ambiente e é divertido de conduzir: na verdade é muito divertido. O pico de torque de acordo com a necessidade é uma sacada genial, a dinâmica do carro é excelente e o espaço maior, em combinação com a menor largura dos pneus, fazem do i-Pace um campeão de praticidade, isso antes de você contabilizar o quanto economizará em estacionamentos e pedágios urbanos ao longo da vida. A verdade é que o pessoal de Pesquisa e Desenvolvimento precisa achar um material menos raro que o cobalto para a bateria, a eficiência versus a equação de custos deve melhorar a cada ano e os BEV (battery electric vehicle) precisam ser mais engajados no contexto das inovações autônomas e serviços digitais.

Diante disso, o futuro próximo da mobilidade não aceitará nada que não seja inovador/inteligente. Há não muito tempo, a Jaguar se contentava em adotar tecnologias inventadas por terceiros. Nesse momento, em 2018, no entanto, graças ao fundamental suporte de Ratan Tata, o i-Pace é o surpreendente líder do segmento.

Jaguar i-Pace EV400
> Preço na Europa A partir de R$ 340 mil
> Motor Dois motores elétricos, 395 cv, 70,9 kgfm
> Transmissão Velocidade única, tração integral
> Suspensão triângulos duplos na frente, Multi-Link traseiro, suspensão pneumática
> Desempenho 0 a 100 km/h 4.8 s, 200 km/h, autonomia 480 km, 0 g CO2/km
> Peso 2.208 kg
> À venda na Europa Disponível

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