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O halo que salva?

A Fórmula 1 introduziu na temporada passada o Halo protetor de cockpit. Segundo a FIA o equipamento foi responsável por preservar a vida de Charles Leclerc no forte acidente com Fernando Alonso na largada do GP da Bélgica de 2018. O caminho é definitivo para todas as categorias de monopostos. Fórmula 2 e Fórmula E receberam o equipamento e agora é a vez das categorias de base. Por Luca Bassani | Edição Alan Magalhães | Fotos Luca Bassani e Agência Wri2

RaceCar

A FIA – Federação Internacional do Automóvel – e sua constante preocupação com a segurança do esporte, introduziu na temporada passada da Fórmula 1 o Halo protetor de cockpit, na esperança dar mais proteção aos pilotos. A Fórmula 2, categoria direta de acesso à F1, também recebeu o Halo no novo carro de 2018. No final do ano passado, foi a vez da Fórmula E receber o equipamento, na estreia do seu novo carro de segunda geração para a quinta temporada 2018/2019. É um caminho sem volta, ditado pela lógica de que todo item de segurança vem de cima para baixo, da F1 para todas as categorias de monopostos, atingindo até a base da pirâmide que se forma abaixo dela. A partir de 2019, as próximas gerações dos carros Dallara de Fórmula 3 e dos Tatuus de Fórmula 4, também receberão o Halo. O atraso se deveu aos prazos tradicionais de renovação dos modelos a cada três temporadas.

A busca por segurança na Fórmula 1 sempre foi proativa e acelerada após a perda de uma vida. A ideia do Halo ou de uma proteção para o piloto num cockpit aberto, remonta a década de 70, quando em média dois pilotos morriam por temporada, apenas na F1. Porém, naquela época os carros eram bombas incendiárias e a atenção ficou primeiramente focada nesse item. Foram desenvolvidos os tanques de borracha, roupas antichama em Nomex™ e o conceito de intervenção rápida das equipes de segurança. Naquela época, gerar dificuldades para os pilotos saírem de seus carros em chamas não parecia uma boa ideia.

O assunto Halo voltou às discussões com força após a morte de Henry Surtees, filho do ex-campeão de Fórmula 1 John Surtees, que aos 18 anos foi vitimado por uma roda que se soltou de outro carro de Fórmula 2 que atingiu seu capacete. A FIA já havia estabelecido cabos de aço complementares que impedem na maioria dos acidentes, que a roda se desprenda dos carros, porém, com eficiência zero quando ela se solta por ter sido mal colocada ou por falha de algum componente. O assunto também voltou à mesa de negociações entre a FIA e as equipes de F1, após o acidente com Jules Bianchi no GP do Japão em outubro de 2014, que se confirmaria fatal em 17 de julho de 2015, depois de um coma longo do promissor piloto francês. O acidente bizarro de Bianchi em Suzuka foi um choque da Marussia do francês em um trator estacionado numa área de escape, que fazia o resgate do Sauber de Adrian Sutil na caixa de brita. A demora na entrada do carro de segurança durante a volta 44 da corrida realizada num dilúvio provocado por um furacão previsto para a hora da prova, culminou em tragédia.

O capacete de Jules Bianchi não bateu no trator. Sua Marussia foi parada bruscamente, gerando fortíssima desaceleração. Bianchi acabou perecendo pelo impacto de seu cérebro contra a caixa craniana

O acidente mostrou ao mundo do esporte que sempre há o que ser feito quando o assunto é segurança. Mesmo no mundo tecnológico da F1 de hoje, o impensável e o imponderável acontecem exatamente quando estamos certos do controle da situação. “O homem sempre humaniza os erros técnicos”.

Na aviação, por mais que se avancem os protocolos de segurança, acredita-se que o homem sempre irá descobrir uma maneira nova de derrubar um avião. Segundo a mítica lei de Murphy: “Se há a possibilidade de várias coisas darem errado, todas darão na sequência que causar o maior prejuízo”. Pode parecer um absurdo para um leigo, mas o fato de Bianchi ter chocado seu F1 com um trator na área de escape, obedece a uma lógica que hoje é bem compreendida dentro do universo da investigação de acidentes aéreos: um sanduíche de fatores que sobrepostos provocam a tragédia; e também que a ausência de um ou mais destes fatores evitariam o sinistro. Na época, Jules Bianchi era o príncipe prometido para o futuro da Ferrari por Nicolas Todt, seu empresário e filho do atual presidente da FIA, Jean Todt. A influência da dupla na Ferrari remonta o tempo em que o pai Todt era dirigente da equipe de Maranello, exatamente no período dos cinco títulos de Michael Schumacher com os italianos. É fácil entender hoje o poder de seu filho – empresário de pilotos – na Scuderia Ferrari, que para 2019 emplacou a contratação de Charles Leclerc, deslocando inclusive o campeão mundial Kimi Räikkönen para a Alfa Romeo. ‘Nico’, como é conhecido na F1, conseguiu prematuramente com Leclerc o que naturalmente já estava certo para Bianchi, que ocuparia com certeza hoje o lugar do monegasco na Ferrari. Apesar de ter sido o primeiro acidente fatal na Fórmula 1 após Ayrton Senna e incentivar mudanças na segurança da F1, o Halo não salvaria a vida de Jules Bianchi. O jovem piloto francês, à época com 25 anos, sofreu uma ampla lesão axonal difusa no cérebro, devido à forte desaceleração. Seu capacete, ao contrário de especulações, não bateu no trator e sim na parte posterior do cockpit atrás do piloto. Jules Bianchi acabou perecendo pelo impacto de seu cérebro contra a caixa craniana, rompendo a maioria das conexões nervosas com a medula cervical. Seu acidente inspirou os dirigentes da FIA a tirar antigos projetos das gavetas para dar maior proteção aos pilotos, principalmente porque seu empresário e investidor estava diretamente ligado à entidade.

Foi assim também no caso da morte de Ayrton Senna. Pragmaticamente falando, talvez não bastasse a morte do austríaco Roland Ratzemberger nos treinos de sábado do GP de San Marino de 1994, mas sim o choque global da perda de um tricampeão em Ímola, ao vivo, em cores para todo o mundo, que pressionou a FIA a responder com medidas de segurança no esporte. Na aviação moderna e com os novos protocolos de segurança resultantes da investigação de acidentes aéreos, supõe-se que cada passageiro morto salvará outros quinhentos. Não é exagero considerar numa visão poética, que Ayrton Senna não morreu em vão, salvando nas últimas4 25 temporadas, mais de uma centena de pilotos ao redor do mundo. Outra reflexão por associação é que a teórica falha do capacete BELL M3 de Senna, que permitiu a transfixação de uma barra da suspensão, inspirou Michael Schumacher e a fabricante alemã Schubert a desenvolver um capacete blindado. Desde que adotado pelo alemão, o capacete da Schubert passou a ser figura quase unânime na maioria dos pilotos da Ferrari. No bizarro acidente de Felipe Massa na Hungria em 2009, quando uma mola solta da Brawn de Rubens Barrichello o atingiu a mais de 240 km/h, foi a incrível resistência do Schubert, que o salvou. Segurança na F1 é assim: através de Schumacher, Senna salvou Massa.

Antes da introdução do Halo, o maior avanço na segurança dos pilotos havia sido a criação do HANS Device, estrutura rígida em fibra de carbono que limita os movimentos da cabeça. O HANS, em inglês sigla de Head And Neck Support, foi criado no início da década de 90 pelo engenheiro norte-americano Dr. Robert Hubbard, que faleceu no início deste ano. Depois dos acidentes em Ímola em 1994, o HANS gerou grande interesse na FIA. É difícil imaginar o que aconteceria com Ayrton Senna se estivesse usando o equipamento, dada a fatídica parte da suspensão que se projetou contra o capacete do brasileiro. Mas no caso do acidente do austríaco Ratzemberger, o HANS teria grande chance de ter salvo a vida do piloto. O equipamento tornou-se obrigatório pela FIA a partir de 2003 e desde então tem se mostrado muito eficiente, principalmente para danos relacionados à coluna cervical e fraturas na base do crânio. Nos acidentes de Robert Kubica no GP do Canadá de 2007 e no de Felipe Massa no GP Hungria em 2009, o HANS foi muito atuante. O incrível acidente de Kubica contra o muro no circuito de Notre Dame em Montreal, pode ser muito bem comparado ao de Roland Ratzemberger em Ímola, com resultados absolutamente opostos. O polonês Kubica viveu para vencer exatamente um ano depois, em 2008 no Canadá, como primeiro piloto da Polônia a subir no degrau mais alto do pódio num GP de Fórmula 1.

O Halo pesa 7 kg e é feito de uma combinação de titânio e fibra de carbono. É uma estrutura rígida, não deformável e até estrutural do cockpit

O Halo com certeza trará resultados práticos, e a cada acidente a FIA exultará a sua introdução, como no caso do acidente de Charles Leclerc na largada em Spa. Na contramão, quando um acidente fatal voltar a ocorrer, o discurso tenderá a culpar o imponderável da tragédia, apesar dos esforços da entidade. O Halo ajudará em vários acidentes, a maioria não acontecerá na principal categoria, a Fórmula 1, mas sim nas categorias de base, com pilotos mais jovens e com incidência maior de acidentes. Isso também porque na F1 os carros no grid são apenas 20 e os monopostos que usarão o equipamento no mundo em 2019 serão quase 200. Porém, para o fã do esporte, o Halo visualmente representa um retrocesso. A Fórmula 1 e suas categorias de acesso sempre tiveram o apelo de mostrar a ação da pilotagem e as cores dos capacetes, que representam a identidade visual do piloto dentro do cockpit. Muitos puristas defendem inclusive que o risco de desafiar o perigo é parte inerente a este esporte e que isso sempre atraiu audiência. Também a geração de imagens perdeu um pouco de apelo humano, mas novas posições de câmera ‘onboard’ foram achadas usando o próprio Halo. A própria Liberty Media, empresa americana promotora da F1, descobriu uma maneira de aplicar infográficos na tela exatamente sobre o Halo, numa solução criativa e eficiente.

O Halo da F1 pesa 7 kg e é feito de uma combinação de titânio e fibra de carbono. A peça onerou financeiramente as equipes no ano de sua implementação. A Force India, um time com o sétimo orçamento na F1, reclamou abertamente em 2018 dos custos de adaptação do equipamento. Na prática, o Halo é uma estrutura rígida, não deformável e até estrutural do cockpit, porém, atua de forma diferenciada de outros itens de segurança, porque ao contrário do ‘nose cone’ em fibra de carbono na frente do cockpit, não dissipa a energia cinética durante um impacto.
Fato é que num curto período de tempo, as opiniões de todos já apontam favoravelmente ao uso do Halo, assim como foi com o HANS, estranheza no começo e indispensável depois. Pilotos ainda estão divididos entre a sensação de segurança e a da perda de liberdade. Vários deles já reclamaram da dificuldade em sair rápido do carro, inclusive o espanhol Fernando Alonso, que para sair de sua McLaren em Spa-Francorchamps após o acidente com Leclerc, teve que ser amparado por um fiscal.

Assim como o cinto de segurança e o ‘airbag’, equipamentos de segurança ainda incomodam a natureza selvagem do homem. A FIA que tem no seu principal slogan tornar as estradas seguras, sabe como ninguém que precisa proteger o homem do próprio homem e seus brinquedos perigosos. Se a natureza do homem é complexa e instável, como entidade a FIA quer arbitrar um esporte menos selvagem. Então é melhor colocar o animal numa gaiola, como parece ter feito o Halo.

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